A reforma do Código Penal e Criminologia: nossos Tibúrcios e seu tecnicismo como prioridade
Por Paula Pereira Gonçalves Alves e Gabriel Bulhões.
Busca-se ressaltar acerca da criminologia como uma chance de racionalizar uma política criminal, descendo os degraus até o limiar de sua incidência, penetrando na tessitura social, especialmente nos estratos mais débeis, em que está seu público. Torna-se imprescindível levantar uma discussão que ficou às margens dos trabalhos de elaboração do novo Projeto de Código Penal – PL 236/2012, a partir de um aporte metodológico da criminologia.
Nesse ínterim, a criminologia socialmente responsável, diante de sua natureza substantiva (em contraposição às reformasmeramente adjetivas propostas pela comissão de juristas do Anteprojeto do Código Penal), tem o condão de substituir a racionalidade hegemônica, a qual possui uma pretensa aspiração à neutralidade. Logo, temos que o “papel da criminologia é fazer não cristalizar, não paralisar, não neutralizar a potência corrosiva dos acontecimentos fáticos em nossa realidade”.(1)
Conforme será exposto, questões criminológicas não foram aplicadas corretamente ou sequer foram apreciadas com a devida atenção para a elaboração de um Anteprojeto de Código Penal. Houve a inobservância do Direito Penal enquanto parte de um saber integrado que carece do fato, para que, assim, possa chegar às questões valorativas e à criação de normas. Porém, o questionamento que se faz não se encontra ligado apenas aos pontos dogmáticos, mas às questões criminológicas.
Encontra-se cada vez mais em evidência o fato de que a postura científica não pode ser somente contemplativa, sem que haja uma sensibilidade com a realidade social, compromissada axiologicamente com os direitos e garantias fundamentais dos homens e das mulheres. Essa conduta científica vem ocasionando uma crise no pensamento e em teorias sociais, ao não se atentar aos fatos, por meio de um olhar empírico.
De suma importância, antes de falarmos de qualquer questão dogmática, atendermos às políticas criminais que visam o desencarceramento em massa, bem como às políticas públicas sociais voltadas aos problemas estruturais que estão interseccionados, tais como: racismo, expansão punitiva, militarização das polícias, política de guerra às drogas, encarceramento em massa, criminalização da pobreza, patriarcado e desigualdade social. O discurso punitivista tem uma única finalidade prática: escancarar sua eficiência, sob o manto de uma hipotética “falácia”, de modo a retroalimentar sua própria lógica de punição e violência institucional.
Com isso, a lógica punitiva renuncia às condições que integram um fenômeno de imensa complexidade que não se restringe à existência de leis mais ou menos severas.(2) A cultura punitivista ignora conquistas históricas da humanidade, especialmente os avanços frutos das perspectivas críticas que assim estariam inseridas nas ciências criminais integradas. Isso sem falar em outros aspectos, como o desvirtuamento do instituto da prisão preventiva no ordenamento brasileiro atual, o que faz que essa nefasta exceção à presunção de inocência se transforme em regra e passe a ser implementada como uma sistemática práxis estatal.
No que diz respeito à reforma legislativa, uma das justificativas para alterar o Código vigente, editado em 1940, consiste em adequá-lo à nova realidade da sociedade brasileira, que se transformou gradualmente após a reemocratização. Mas qual é essa “realidade social” que o legislador se baseia ao elaborar um projeto que não atenta, sequer, ao postulado básico de que o Direito Penal deve limitar-se, em face dos princípios basilares da intervenção mínima? Do que se percebe, fez-se mais uma compilação e sistematização das centenas de tipos penais atualmente existentes em nosso Código Penal de 1940 e das nossas leis penais extravagantes, do que uma verdadeira reforma.(3) Tal solução, certamente, está longe de poder atender aos verdadeiros problemas ligados à nossa calamitosa realidade.
A má orientação metodológica e substantiva presente na elaboração do PLS 236/2012 denota um reflexo do conhecimento jurídico tecnoburocrata ainda presente em parte da comunidade jurídica. Retomada a construção histórica do ensino jurídico, segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha, “os juristas passaram a atuar com autonomia e não somente por meio de interesses burocráticos por parte do Estado – contudo, ainda sim, sob influência de interesses liberais, de forma a ocupar apenas os cargos políticos”.(4) Não tão longínquo, a elaboração do atual Projeto de Código Penal denota essa formação jurídica tecnicista presente em parte dos juristas nomeados à Comissão instalada para a reforma legislativa, por meio de uma atuação condizente com interesses econômicos que norteiam o fenômeno criminal.
Ora, tal afirmativa acerca do tecnicismo presente no processo de formulação jurídica do Anteprojeto encontra-se manifestada na Exposição de Motivos, pelo seguinte teor: “justificam a necessidade de uma revisão geral e de uma sistematização das leis penais em nosso país”. Quanto aos retrocessos no campo do conhecimento, a Exposição ainda busca afirmar que o Projeto Legislativo é condizente com as propostas da Constituição Federal de 1988, que “superou velhos dogmas do liberalismo clássico”. Adentrar em assuntos novos que envolvem uma sociedade complexa com recurso aos velhos arquétipos jurídicos não é uma forma de superação de dogmas.
Levar em consideração a situação do sistema carcerário implicaria viabilizar possibilidades que diminuíssem a quantidade de penas privativas de liberdade, precipuamente. Mas não é esse o propósito dessa compilação dogmática que demostra o Projeto de Reforma do Código Penal. Ao contrário disso, a Comissão sobressalta valores puramente dogmáticos e técnicos, em detrimento de uma análise comprometida com a realidade social.
Ademais, o fato de todos os tipos penais do Projeto do Código Penal serem punidos com pena de prisão, sem possibilidade de cominação de pena restritiva de direito ou multa autonomamente, representa um grande retrocesso, ou pelo menos uma grande chance esvaída de progresso. Nessa mesma esteira segue o fato de não terem sido abolidas as penas mínimas de todos ou de alguns tipos penais, marchando na contramão das últimas elaborações legislativas de outros países.
Portanto, restam evidências de que os saberes criminológicos foram ignorados, no sentido de servir à legitimação de diferentes políticas governamentais (diferentemente de políticas criminais), que estão sob os cuidados de interesses particulares. Sem embargo, é necessário que haja uma independência acadêmica, desvinculada de quaisquer atrações políticas e mercadológicas, interessadas em atender à minoria que as controla.
Infelizmente, essa conduta do Legislativo de desviar o foco dos problemas sociais, com questões meramente técnicas, vem de uma cultura já contaminada em nossa história em relação à elaboração de Códigos. A Reforma do Código Penal de 1984 (Lei 7.209, de 11.07.1984) não conciliou a defesa dos interesses sociais com a preservação dos direitos e garantias individuais, que deveria presidir a reforma conforme a “Carta de Princípios” formulada pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária realizado em 1981, em Brasília. Isso já levou à afirmação de que, “sob qualquer ângulo que se encare o problema da expansão alarmante da criminalidade, a reforma da legislação substantiva ganha pouca relevância”. Portanto, com essa atual Reforma (meramente sistematizadora do nosso ordenamento jurídico penal positivado), estamos insistindo no retrocesso de um legado já “fracassado”, diante dos fins declarados pelo controle penal, e assim reconhecido.
Além desse fator crítico à Reforma, ao não acompanhar tendências criminológicas comprometidas com a realidade social, há outra questão que diz respeito aos jogos políticos que perpassam pela Comissão. Em vista de interesses políticos que norteariam um processo legislativo, tem-se como resultado a elaboração do Código Penal em um lapso de tempo totalmente inviável para o tamanho da tarefa que é elaborar um Código condizente com o ordenamento jurídico, diante das propostas da Carta Cidadã de 1988. Assim, torna-se, no mínimo, explicável o fruto do labor da Comissão elaboradora do Anteprojeto do Código Penal recentemente apresentado ao Senado Federal, votado a toque de caixa, em regime de urgência.
A elaboração de um Código Penal demanda tempo suficiente para reflexão teórica e prática de suas reais necessidades ligadas à realidade da atual conjuntura do sistema criminal. Isso deve ser um processo que envolva todas as instâncias da sociedade civil, comunidade acadêmica e, principalmente, vozes das pessoas em situação de prisão enquanto atores e atrizes para dizer sobre o fenômeno criminal (em vez de totalmente ignorados [as]) como o foram pelos membros da Comissão).
Ora, é acertado afirmar que se torna inviável redigir um novo Código, com toda a extensão que lhe é peculiar, em apenas alguns meses. Toda cautela é bem-vinda: primeiramente, para que o legislador não caia em armadilhas econômicas, que poderão s. Assim feito, essa é mais uma tomada de retrocesso legislativo, dessa vez de grande vulto, que costuma ser a práxis no Congresso Nacional.
Apesar da declaração proferida pela Presidência da Comissão Jurídica do PLS 236/2012 de que “Vamos ouvir a sociedade e as instituições”,(5) verifica-se uma mera retórica de estabelecer diálogos com a comunidade acadêmica, instituições civis e estatais que se manifestaram contra o projeto de lei.(6)
Por derradeiro, cabe uma reflexão analógica, elucidativa do atual contexto (frise-se), com a obra Tudo vai sem novidade (publicada em 1859, cujo autor é Gervásio Lobato, e retomada por Alberto Silva Franco, no ano de 2012(7)), em que se narra uma interlocução entre o filho do patrão e seu empregado, Tibúrcio, o qual trabalhava na fazenda de seus pais. Assim, Tibúrcio descreve todas as desgraças que poderiam acometer o filho do patrão, com um tom sutil que desencadeia vários outros acontecimentos igualmente trágicos, como se nada de relevante houvesse acontecido naquele período de tempo em que o herdeiro de seu patrão ficou afastado de sua fazenda. De maneira bem humorada, ao final do diálogo, depois de contar todos os acontecidos, Tibúrcio conclui: “Mas o mais vai sem novidade, graças a Deus”. Assim o faz nosso legislador.
Esses “Tibúrcios” do Congresso Nacional estão fazendo com a sociedade brasileira um cenário equivalente: ignoram nossos problemas; criam leis a fim de transmitir uma imagem progressista, por terem aparentemente avançado em temas que são tabus para a sociedade brasileira; apontando como centro do debate questões técnicas e formais, de modo a desviar o foco dos verdadeiros problemas, tais como política de drogas, crimes patrimoniais, encarceramento feminino etc. Como resposta à sociedade e aos nossos problemas: “tudo vai sem novidade”. Seja na bizarra conjuntura carcerária, seja na penalização da miséria, na expansão do Direito Penal, na pandemia da população prisional – “tudo vai sem novidade, graças a Deus”.
Em tempos que carecem de avanços significativos no sistema de justiça criminal, precisamos adotar uma postura a fim de não retroagirmos.
Notas
(1) pAndoLFo, Costi Alexandre. A criminologia traumatizada – um ensaio sobre violência e representação dos discursos criminológicos hegemônicos no século XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 3.
(2) Conforme vem realizando, nos últimos anos, nosso Congresso Nacional, inclusive podendo-se tomar por parâmetro a pesquisa realizada pela Direito FGV-SP, no âmbito da edição de n.o 07/2009 da Série Pensando o Direito: “A análise das justificativas para produção das normas penais”.
(3) Entrevista especial com JAcinto coutinho e edwArd rochA de cArVALho, pelo Instituto Humanista Unisinos. Disponível em: [http://www.ihu. unisinos.br/entrevistas/512777-reforma-do-codigo-penal-ha-vicios-de- origem-entrevista-especial-com-jacinto-coutinho-e-edward-rocha-de- carvalho].
(4) ArAnhA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996. p. 183.
(5) Disponível em: [www.ibccrim.org.br/noticia/13892-Instalada-a- Comiss%C3%A3o-para-elabora%C3%A7%C3%A3o-do-Novo- C%C3%B3digo-Penal]. Acesso em: 17.12.2015.
(6) Nesse sentido, ver: [www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/ repositorio/0/15.05.11.%20Nota%20tecnica_conjunta.pdf]. Acesso em: 17.12.2015. Instituições tais como: a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, a Pastoral Carcerária Nacional, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e a Rede de Justiça Criminal, composta por diversas entidades, dentre as quais a Associação pela Reforma Prisional (ARP), Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justiça Global e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) .
(7) O conto foi proferido por ALberto siLVA FrAnco, no ano de 2012, durante a aula inaugural da I Turma do Laboratório do IBCCrim de Ribeirão Preto, no contexto acerca da atuação e postura por parte de legisladores, de um modo geral. O recorte no tocante à postura dos legisladores responsáveis pelo Projeto de Lei que altera o Código Penal vigente é de responsabilidade e iniciativa da autora/do autor que aqui subscrevem.
BOLETIM IBCCRIM – ISSN 1676-3661
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