A legitimidade da vítima e da investigação defensiva no processo e na investigação criminal.
por Thiago Praxedes de Vasconcelos.
A princípio, pode-se considerar que o texto da Constituição Federal é o maior fundamento para a instituição da investigação defensiva, uma vez que prevê o caráter indispensável do advogado à administração da justiça[1]. Conforme ressaltado, o referido princípio afirma e garante “um tratamento de extremo relevo dado pelo constituinte, o qual deve nortear a visão constitucional acerca do tema”. [2]
Destaca-se o artigo 1º do Provimento n. 188/2018 do Conselho Federal da OAB, que define o conceito de investigação defensiva como uma atividade conduzida pelo advogado, podendo contar com o auxílio de especialistas de outras áreas, como peritos, dependendo da natureza do caso. A investigação defensiva pode ser utilizada em qualquer fase da persecução penal, seja na fase inquisitorial, na instrução processual ou nos recursos, podendo ser iniciada antes de qualquer investigação oficial ou após o trânsito em julgado, a fim de subsidiar uma revisão criminal ou pedidos no processo de execução penal.
A investigação defensiva é ampla e não está limitada a um momento específico do processo penal. Pode-se dizer que o principal objetivo é reunir elementos de prova que constituam um acervo probatório lícito, garantindo a tutela dos direitos do constituinte, destina-se a reforçar a ampla defesa e oferecer ao advogado ou defensor público a possibilidade de obter elementos que favoreçam o acusado, lato sensu, sempre respeitando os limites éticos e legais.[3]
A Constituição da República de 1988 modificou significativamente o Código de Processo Penal, sendo uma dessas mudanças a instituição, ainda que de forma não expressa, do sistema acusatório, que divide as funções processuais entre as partes envolvidas, afastando da figura do juiz a atividade investigativa e quase toda iniciativa de produção probatória. Contudo, não se pode afirmar que tal afastamento é absoluto, uma vez que ainda existem dispositivos legais que conferem ao juiz inciativa probatória.
Nesse contexto, ressaltam-se como outros elementos fundantes da investigação defensiva os princípios da igualdade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Além desses princípios básicos, destaca-se também, o princípio do livre exercício das profissões. Outro elemento fundante é o princípio da paridade de armas, como pressuposto lógico do sistema acusatório e dos princípios do contraditório e da ampla defesa[4].
O princípio da ampla defesa é basilar para legitimar a investigação defensiva, pois garante não só a possibilidade de contraditar as razões da acusação, mas também de garantir que a defesa tenha, sobretudo, os meios necessários para a efetivação do contraditório. Por isso, é assegurado aos litigantes o direito de utilizar “os meios e recursos inerentes” ao exercício da defesa no processo judicial ou administrativo. Ademais, o princípio da igualdade processual garante que a defesa tenha a oportunidade de expor as suas razões e apresentar as suas provas para trabalhar sobre o convencimento do juiz na mesma medida em que a acusação e em todas as oportunidades processuais.
Sobre o contraditório, Aury Lopes Júnior afirma que é imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo, uma vez que se classifica como um método de “confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas”[5].
Ultrapassado o aspecto introdutório acerca da fundamentação normativa, que legitima a investigação defensiva sob sua perspectiva geral, salienta-se que a investigação defensiva pode ser realizada em favor dos interesses do acusado/investigado, mas também em favor dos interesses da vítima, sendo este o enfoque do presente texto. Dito isso, cabe mencionar o artigo 3º, parágrafo único, do Provimento n. 188/2018 do Conselho Federal da OAB, que prevê a condução de investigação, realizada por advogado, com a finalidade de embasar a apresentação de uma queixa-crime[6], seja principal ou subsidiária.
Assim, pode-se denominar de investigação defensiva dos interesses das vítimas[7] o procedimento que visa apoiar qualquer instrumento em benefício de quem foi vítima de uma infração penal. Embora o artigo 268 do CPP mencione a intervenção do assistente de acusação apenas na ação penal, é possível que a vítima se manifeste na fase pré-processual.
Nesse contexto, é importante ressaltar que o redescobrimento da vítima, impulsionado pelo movimento vitimológico, se iniciou após a Segunda Guerra Mundial — período no qual houve gravíssimos atentados à dignidade humana. A princípio, as preocupações se dirigiam mais fortemente para as vítimas dos crimes graves, com ênfase na repressão às violações de seus direitos, até a criação de mecanismos de reparação e/ou minimização do sofrimento oriundo dos atos delituosos. Posteriormente, houve a chancela de posições favoráveis a todos os vitimados, independentemente da natureza do crime e do dano provocado[8].
São manifestações da fase de redescobrimento da vítima: instituição e ampliação das hipóteses de ação penal privada; composição civil dos danos sofridos; penalidade ao infrator de pagamento de multa reparatória à vítima; indenizações e outras medidas de amparo ao ofendido; justiça penal restaurativa.[9]
Quando se fala no direito das vítimas, geralmente refere-se aos direitos de informação, proteção, participação e reparação (assistência), consagrados na Diretiva n.º 2012/29/EU do Conselho da União Europeia, que estabeleceu normas mínimas relacionadas aos direitos, amparo e proteção das vítimas. O direito à participação contempla todas as faculdades processuais e extraprocessuais que garantam a inclusão da vítima no processo, bem como nas medidas e diligências adotadas na fase extraprocessual.[10]
Apesar de o Código de Processo Penal, em sua redação original de 1941 — período anterior ao redescobrimento da figura da vítima —, fosse limitado em relação à participação desta na persecução penal, ainda assim, apresentou alguns dispositivos nesse sentido. Portanto, o CPP já consagrava — e continua a fazê-lo — a participação da vítima nas três fases da investigação, a saber, na instauração, nas diligências e na conclusão.
Nessa perspectiva, cumpre resgatar o julgado do Superior Tribunal de Justiça[11] no RMS n.º 70.411, no qual a Sexta Turma garantiu acesso a familiares de vítimas aos Autos de Inquérito sigiloso, com base em jurisprudência internacional e na própria Súmula Vinculante 14. Mais recentemente, por Decisão Monocrática, o Ministro Jesuíno Rissato, nos Autos do RMS 73.008/AL[12], reiterou essa posição firmada no RMS 70.411, e foi além: permitiu que até mesmo associações representantes de vítimas de crimes difusos tivessem legitimidade para intervir na seara pré-processual.
Ressalta-se que, nos termos do artigo 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos, as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) são vinculantes no Brasil. Ademais, é importante destacar a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, ao editar a Recomendação n.º 123/2022, cujo artigo 1º, I, recomenda aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro “a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas”.
Outra normativa que merece destaque é o Comentário Geral n.º 36 do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, segundo o qual os Estados devem revelar aos “familiares mais próximos da vítima detalhes pertinentes sobre a investigação, permitir-lhes que apresentem novos elementos de prova, reconhecer-lhes legitimidade processual nos inquéritos, e prestar informação pública sobre as diligências de inquérito efetuadas e das constatações, conclusões e recomendações delas emanadas, com exceção da omissão dos elementos absolutamente necessários”.
É perceptível a crescente legitimidade da vítima na fase pré-processual e a importância da investigação defensiva como instrumentos fundamentais para a proteção dos direitos e garantias no processo penal. Ainda acerca da legitimidade, como já tratado anteriormente sob a perspectiva pré-processual, é válido fazer um recorte sob a ótica do processo penal prestes a ser instaurado, ressaltando que a legitimidade é um dos requisitos essenciais para a ação penal[13], sendo fundamental para o recebimento da acusação.
No contexto das ações penais públicas, a legitimidade está prevista no artigo 24 do CPP e, sendo esta a situação mais comum no ordenamento jurídico, é denominada legitimidade ordinária. Assim, o Ministério Público é o responsável principal pela ação penal pública, a qual pode ser tanto incondicionada quanto condicionada. Na ação penal incondicionada, não é necessária a representação do ofendido para que a denúncia seja apresentada. Já na ação penal condicionada, é imprescindível que o ofendido faça uma representação para que o Ministério Público formalize acusação.
Por outro lado, a ação penal privada é iniciada pelo ofendido ou por seu representante legal. A ação penal privada se divide em três categorias: a ação penal privada propriamente dita, a ação penal privada subsidiária da pública e a ação penal privada personalíssima. A ação penal privada subsidiária da pública, aplica-se aos crimes de ação penal pública quando o Ministério Público não age e não apresenta a denúncia no prazo legal. Já, a ação penal privada personalíssima só pode ser iniciada pelo próprio ofendido. [14]
A Constituição Federal, no artigo 5º, LIX, estabelece que a ação privada é permitida nos crimes de ação pública se o Ministério Público não agir dentro do prazo legal estipulado quedando-se inerte. O artigo 29 do Código de Processo Penal detalha a legitimidade do ofendido para promover a ação penal privada subsidiária da pública, o que reforça a legitimidade da vítima, já que, embora o Ministério Público tenha a legitimidade para propor a ação, na hipótese de sua inércia, a vítima possui a prerrogativa de propor a ação subsidiária em seu lugar.
Quanto à assistência à acusação, o artigo 268 do CPP concede ao ofendido, ao seu representante legal e às pessoas mencionadas no artigo 31 do mesmo Código a legitimidade para atuar como assistentes de acusação. Essas disposições legais destacam a importância do ofendido no processo penal, sendo essencial tanto para propor a queixa-crime subsidiária quanto para atuar como assistente de acusação nas ações penais públicas, sejam elas incondicionadas ou condicionadas à representação.
Adentrando no conceito de vítima para o processo penal, é importante refletir sobre o termo “ofendido”, que pode ser compreendido como a vítima no contexto processual. Em todos os crimes, o Estado é o sujeito passivo; por outro lado, a vítima é considerada um sujeito passivo eventual, ou seja, é aquela que experimentou diretamente a conduta do infrator[15]. Diante disso, é importante se distinguir entre “prejudicado” e “vítima”. O “prejudicado” é a pessoa que sofre um dano decorrente do crime, afetando aspectos econômicos da atividade criminosa. Embora o prejudicado possa também ser um sujeito passivo, nem sempre essas duas categorias coincidem.
Um exemplo prático disso seria o caso do delito de denunciação caluniosa, cuja vítima direta é a administração da justiça (o próprio Estado), mas o prejudicado (aquele que sofreu uma persecução penal injusta, quando era sabidamente inocente pelo infrator) pode atuar no processo penal como vítima, com legitimidade, inclusive, para outorgar ao seu representante legal poderes para figurar como assistente de acusação no decorrer do processo.
Após essa análise acerca da legitimidade da vítima, tanto no âmbito pré-processual quanto no próprio processo penal já instaurado, conclui-se que a Constituição Federal, ao assegurar o direito à presença do advogado e a ampla defesa, estabelece uma base sólida para a investigação defensiva, que se torna essencial para equilibrar a atuação das partes envolvidas. Dessa forma, a integração dos direitos da vítima nas fases preliminares da persecução penal demonstra um avanço significativo em termos de proteção e inclusão, garantindo sua participação ativa, o que é fundamental para a realização da justiça.
A interseção entre a legitimidade da vítima na fase pré-processual e a investigação defensiva sublinha a necessidade de um sistema penal que seja sensível às necessidades das partes envolvidas. Por fim, a proteção dos direitos das vítimas e a promoção de uma investigação defensiva robusta, seja em favor da vítima ou do acusado, lato sensu, não só fortalecem a equidade do sistema jurídico, mas também asseguram que todos os aspectos do processo sejam conduzidos com a máxima transparência e respeito pelos direitos fundamentais.
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[1] Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
[2] BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de investigação defensiva: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. 1. Ed. Florianópolis: EMais, 2019. p. 44.
[3] TALON, Evinis. Investigação Criminal Defensiva. 2020, p. 56.
[4] BULHÕES, op. cit., 2019.
[5] LOPES JR., Aury. op. cit., 2018.
[6] Art. 3° A investigação defensiva, sem prejuízo de outras finalidades, orienta-se, especialmente, para a produção de prova para emprego em:
Parágrafo único. A atividade de investigação defensiva do advogado inclui a realização de diligências investigatórias visando à obtenção de elementos destinados à produção de prova para o oferecimento de queixa, principal ou subsidiária.
[7] BULHÕES, Gabriel. Manual Prático de investigação defensiva: um novo paradigma na advocacia criminal brasileira. 1. Ed. Florianópolis: EMais, 2019. p. 104.
[8] OLIVEIRA NETO, Emetério Silva de. Vitimodogmática e limitação da responsabilidade penal nas ações arriscadas da vítima. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 45.
[9] OLIVEIRA NETO, Emetério Silva de. Vitimodogmática e limitação da responsabilidade penal nas ações arriscadas da vítima. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 46-47.
[10] MORAN, Fabiola. Ingerência penal e proteção integral à vítima. 1. ed. São Paulo: D’Plácido, 2020, p. 185.
[11] STJ, RMS Nº 70411 – RJ (2022/0402468- 4). Rel. Min. Rogério Schietti Cruz.
[12] STJ, Decisão Monocrática, RMS 73.008/AL, Rel. Min. Jesuíno Rissato, j. 25/06/2024.
[13] GRINOVER, Ada Pellegrini. As condições da ação penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 69, p. 179-199, nov./dez. 2007.
[14] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado doutrinário de processo penal. 2. ed. Leme: Mizuno, 2021, p. 175.
[15] MENDONÇA, Andrey Borges de. Comentário ao artigo 24. In: FILHO, Antônio Magalhães Gomes; Toron, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.