Judiciário Policizado

Por Gabriel Bulhões

A crise que vivenciamos hoje no cenário nacional se alastra por vários
setores, do político ao econômico, do social ao cultural. Contudo, algumas de nossas
crises são mais antigas do que outras, ou ainda mais profundas e/ou enraizadas. A
cultura institucional, por exemplo, que é extremamente fortalecida no Brasil, possui
severas distorções e reflete esse mister na sociedade em que está inserida. Na verdade,
culturas institucionais. Explico.

Presenciamos uma disputa institucional – às vezes sutil, outras nem
tanto – que muito engessa ou desvirtua o funcionamento e o direcionamento que as
instituições devem dar à sociedade brasileira, tanto no plano macro, quanto no micro.
Zaffaroni (2001) nos traz que, invariavelmente, as agência de controle (notadamente na
América Latina) buscam como objetivo primário imprimir as suas marcas urinárias no
processo corrente. As interações entre essas instituições podem convergir, ou divergir a
depender da soma dos fatores circunstanciais e conjunturais; mas a delimitação
estrutural, em regra, já está definida.

Essa disputa, em algumas situações, se assemelha quase a uma disputa
de egos, subjetivamente travada, porém, entre instituições públicas que possuem as mais
valorosas e importantes missões, inclusive constitucionalmente atribuídas. Mas isso será
tema para outro momento de discussão aqui.

Assim, desenvolvendo aquele raciocínio, e tomando como ilustração a
persecução penal e o sistema de justiça criminal, observemos um caso de prisão em
flagrante. Aliás, o exemplo adotado é o mais adequado, tendo em vista que a
esmagadora maioria das prisões efetuadas no Brasil (e posteriormente convertidas em
preventiva) são prisões em flagrante (isso denota a desproporcionalidade entre aquelas
prisões fruto de uma política de segurança pública viaturizada e aquelas decorrentes de
investigação policial).

Temos, assim, em um flagrante que a Polícia Militar, em regra,
visualiza o cometimento de um crime (ou aborda alguém para o famoso “baculejo” em virtude de “atitude suspeita”) e dá voz de prisão ao cidadão (ou cidadã). Nesse momento, nós temos o Calcanhar de Aquiles da nossa política de segurança pública, a qual denota que o foco maior do combate ao crime não está relacionado aos delitos que mais impactam nossa sociedade, os quais envolvem com certeza pactos e reuniões que
não se dão ao ar livre. Aqui, nós temos a primeira e mais importante seletividade do
sistema, a seletividade positiva que determina aqueles que vão ser inseridos na dinâmica
e virar clientes do sistema penal. Temos também a primeira marca urinária da
persecução penal.

Após esse momento, teremos o encaminhamento da ocorrência para a
autoridade policial (da Polícia Civil) para ser lavrado o procedimento necessário (em
regra, trata-se do APF – Auto de Prisão em Flagrante). Nesse momento, temos a
segunda marca urinária desse “processo”. Desde o tratamento dado ao flagranteado,
até a forma como o interrogatório é conduzido e as palavras são transcritas, ipsis literis,
pelo escrivão como ditou o delegado: tudo isso envolve a marca da Polícia Civil no
processo todo.

Eu peço licença para ressaltar a importância do recém-avanço das
políticas judiciária e criminal brasileiras do Projeto Audiências de Custódia, incentivado
pelo Ministro Ricardo Levandowski em sua gestão no CNJ. As audiências de custódias,
hoje, permitem a constatação de qualquer distorção – entre outros fatores – apontados
ou induzidos pelo entendimento até então prevalecente das Polícias Militar e Civil.
Digo prevalecente, pois, antes desse importante avanço, a versão
firmada pela Polícia era suficiente para afastar qualquer possibilidade de contraposição
– naquele momento inicial – pelomagistradoque deveria verificar a legalidade do ato,
tendo em vista que (por uma série de fatores que não cabem nesse texto) existia uma
absoluta impossibilidade de verificar aquela situação apresentada no calhamaço frio de
papéis (o APF) de que dispunha. Por isso, de fato, as prisões em flagrante eram mais
convertidas em preventiva. Prendia-se mais, mas não se prendia melhor. Isso por uma
razão simples: prendia-se desnecessariamente por cautela e impossibilidade de verificar
os motivos ensejadores da custódia cautelar, tendo-se como único elemento de
referência os dados apresentados pela autoridade policial. Percebem, agora, a
importância das marcas urinárias?

Pois bem. Voltamos ao raciocínio e percebemos que, após a lavratura
do flagrante, espera-se que ocorra a audiência de custódia e daí se inicie a fase judicial
da persecução, com a aguardada influência mais incisiva da defesa e a diligência
incessante do Ministério Público, tudo sob a presidência de um juiz. Eu poderia me
debruçar mais agora sobre as posturas da defesa e da acusação na qualidade de
mantenedoras de uma abstrata linha institucional (muito mais perceptível em
representantes ministeriais, por óbvio). Contudo, vou reservar isso para um texto mais
oportuno, e vou reservar espaço agora para o tema que me levou a escrever este texto,
que é a postura judiciária. Mais especificamente, a postura de alguns magistrados
perante as marcas urinárias de outras agências, em especial da Polícia.

Por certo, a seletividade positiva levada a cabo pela Polícia é
determinante para os rumos da persecução penal e com reflexos diretos no Sistema de
Política Criminal e no Sistema Prisional que vivenciamos, os quais estão em deplorável
estado, a ponto de alguns sequer os considerarem – na acepção genuína da palavra –
sistemas. Estão, por essa e outras razões, sem deixar jamais de fazermos, cada um, o
mea-culpa.

Assim, a depender da postura e do entendimento do Juízo, o qual está
– aparentemente – completamente amparado pelo princípio do livre convencimento
motivado, qualquer entendimento apresentado pela Polícia terá o condão de determinar
a decisão judicial, podendo ser descartado qualquer esforço da defesa, sem muita
argumentação para tal. Assim, as versões apresentadas pela autoridade policial ou pelas
equipes de investigação de alguma unidade especializada da nossa Polícia Judiciária, ou
ainda pelo depoimento dos condutores (que, em regra, são os únicos testemunhos
arrolados pela acusação durante a fase judicial, consistindo em um ou dois policiais
militares que realizaram a diligência a qual culminou na prisão em flagrante que, então,
se discute no processo) possuem peso indiscutível no processo penal, principalmente
em algumas varas do Brasil afora.

No caso concreto, um imóvel invadido por uma equipe
descaracterizada de uma delegacia especializada em narcóticos, que não se identificou
aos vizinhos nem apresentou mandado ou ordem judicial (pois, de fato, não existia), que
não estava com o morador presente, foi invadida e, sob o pretexto de fundada suspeita,
o imóvel foi revistado e supostamente encontraram meio quilo de maconha e quarenta

comprimidos de ecstasy. A justificativa? A alegação de uma pessoa que tinha sido presa
com maconha e tinha afirmado que ali era o imóvel de seu fornecedor. O que estranhar?
Essa pessoa supostamente delatora negou tal informação na lavratura do APF, na
Audiência de Custódia e na Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ), tendo afirmado,
ainda, que durante sua prisão os policiais faziam perguntas induzidas sobre uma pessoa
específica e afirmavam que “já sabiam que ele era o seu fornecedor”. Ainda, durante seu
interrogatório na AIJ, o interrogado afirmou que havia um policial que sempre o
ameaçava, que era inclusive o que havia tomado o seu celular e a senha de acesso de
modo forçado. O qual tinha o registro da conversa que marcou um encontro no
Shopping mais movimentado da cidade e que resultou na prisão em flagrante (sic) do
dono do imóvel no meio da praça de alimentação – ocasião na qual não foi encontrada
nenhuma droga nem material suspeito com este.

No seu interrogatório, o dono do imóvel disse que não sabia da
existência da droga, que foi abordado por policiais descaracterizados (no meio da praça
de alimentação do Shopping) que não se identificaram, não informaram o motivo da sua
prisão e o algemaram, conduzindo-o a um veículo também descaracterizado e seguindo
até a delegacia, onde soube do que estava sendo acusado pelo mesmo policial que o
havia prendido uma vez por porte de pequena quantidade de droga, que incessantemente
lhe dizia: “dessa vez você vai ver, vou dar um jeitinho de você passar 10 anos!”. E foi
quase …

A prisão em flagrante (sic) foi considerada legal pelo Juízo
competente e convertida em preventiva. Após a instrução, a versão da Polícia
prevaleceu, e o depoimento do policial que havia sido responsável pela primeira prisão
do dono do imóvel – aquele que achou a droga após invadir o imóvel sem mandado,
suspeita real ou presença do morador – foi o sustentáculo da condenação à seis anos de
prisão. E agora, isso me fez ter vontade de escrever sobre outra coisa: as injustiças da
Justiça. Mas isso é tema para uma outra hora!

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. EM BUSCA DAS PENAS PERDIDAS. Revan: Rio de
Janeiro, 2001.

 

Originalmente publicado em 04/09/2016, no Empório do Direito.

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