Reflexões sobre a Improbidade Administrativa no âmbito do Processo Administrativo Disciplinar

Por THIAGO PRAXEDES

 

O Processo Administrativo Disciplinar (PAD) é o mecanismo pelo qual a administração pública realiza a investigação das infrações funcionais, apurando determinado fato e julgando qual sanção deve ser aplicada ao caso concreto.

Acerca disso, é possível constatar um fundamento muito utilizado em decisões no âmbito dos PADs, o qual embasa a demissão ou rescisão contratual por justa causa, em razão do cometimento de improbidade administrativa, seja do servidor, seja do empregado público, respectivamente.

Portanto, tal embasamento é previsto para ambas as espécies de PADs, tanto daquele que apura fato cometido por servidor em órgão público, sob regime estatutário1, quanto daquele que apura fato de empregado público de empresa de economia mista, regido pela CLT.2

Não obstante, no tocante ao fundamento específico do cometimento de improbidade administrativa pelo servidor público é que a presente análise se debruçará, merecendo atenção em razão da existência de aparente equívoco quanto à sua aplicação no Processo Administrativo Disciplinar, causando a problemática que será abordada.

Tal equívoco quanto à sua aplicação pode desvirtuar o objetivo e ultrapassar o limite legal do procedimento, principalmente levando em consideração o ordenamento jurídico como um conjunto de normas3, sob a perspectiva de uma interpretação lógico-jurídica de hermenêutica sistemática.

Como se sabe, anteriormente, a conduta culposa também podia ser passível de punição por improbidade administrativa, o que já não é mais permitido. Tendo isso em vista, vale refletir que atos danosos resultantes de imprudência, imperícia ou negligência não podem mais ser qualificados como improbidade, uma vez que a legislação4 passou a exigir explicitamente a presença do dolo para a responsabilização por improbidade administrativa.

Nesse contexto, vale salientar que, muitas vezes, circunstâncias adversas e a precariedade no ambiente laboral influenciam diretamente na prática de ações irregulares pelos servidores públicos, as quais acabam sendo apuradas no âmbito do PAD, podendo ensejar a demissão pelo cometimento de ato ímprobo e provocar uma verdadeira devassa na vida do servidor.

Sabe-se que, para um agente que cometa improbidade administrativa e enfrente uma persecução para sua responsabilização em relação a essa conduta, um dos preceitos básicos de defesa é saber exatamente qual conduta está sendo objeto do processo.

Todavia, não raramente, as apurações e subsequentes decisões, apesar de imputar um ato de improbidade àquele que é polo passivo do PAD, deixa de apontar a tipificação do ato ímprobo, assim como a descrição minuciosa da conduta.

Dessa forma, o PAD, que é uma persecução disciplinar, a qual pode apurar um suposto ato ímprobo, se não indicar a tipificação deste conforme a Lei de Improbidade determina, já impede assim o exercício de defesa de forma eficaz, acarretando uma situação de inépcia acusatória, análoga à inépcia da Inicial (em caso de improbidade) ou inépcia de Denúncia (em caso de ação penal).

Outro problema, inclusive de raiz mais profunda, acerca dessa argumentação/fundamentação utilizada, encontra-se na sua própria natureza, como já relatado anteriormente, visto que a nova Lei de Improbidade só reconhece o ato ímprobo praticado de forma dolosa.

Diante disso, não há mais a possibilidade fidedigna de se apurar ato de improbidade no âmbito do Processo Administrativo Disciplinar, haja vista sua natureza análoga à inquisitorial, evidentemente precária. O procedimento não possui capacidade de apurar o elemento subjetivo especial do tipo, que demandaria maior sofisticação e esmero na instrução dos processos, o que seria imprescindível para poder apurar um ato de improbidade.

Nessa perspectiva, se demonstra a inviabilidade procedimental utilizada para apontar um ato de improbidade implicado ao servidor público por meio de PAD, o qual possui o mesmo órgão atuando como investigador, acusador e julgador5, sendo difícil falar em imparcialidade quando a dinâmica do processo é posta dessa forma.

À vista disso, a garantia da independência da Magistratura e do Ministério Público é uma preocupação central nos processos punitivos, como um todo, no âmbito judicial. Nesse sentido, se faz necessário ressaltar a importância do fortalecimento de autoridades administrativas imparciais, dotadas de um mínimo de independência e profissionalismo. Tal medida visa assegurar julgamentos justos e razoáveis, em conformidade com a proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.6

Em tese, o PAD deveria seguir os princípios da ampla defesa e do contraditório, devido processo legal, presunção de inocência, proporcionalidade e razoabilidade. Contudo, como relatado anteriormente, o PAD tem a sua investigação, acusação e julgamento, ou seja, todas as funções do processo, exercidas pelo mesmo órgão, o que dificulta, na prática, o desempenho e exercício dos referidos princípios.

Para que alguém possa ser sujeito a sanções administrativas, seja por decisão judicial, seja por decisão administrativa, é fundamental que haja evidências de sua culpabilidade. Esta premissa não surge de uma interpretação desconectada da Constituição. Pelo contrário, tal como acontece em todo o contexto do Direito Administrativo Sancionador brasileiro, os princípios fundamentais são enraizados na Carta Magna, por meio de uma análise argumentativa que reconhece a relevância dos dispositivos constitucionais.7

Esse mesmo procedimento deve ser aplicado na análise da culpabilidade no campo do Direito Punitivo, especialmente no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. A análise das ações apuradas deve considerar as condições em que estas foram desempenhadas, não podendo ocorrer a imputação de ato ímprobo de forma objetiva.8

Assim, do exame minucioso das circunstâncias, pode acabar sendo afastada a constatação da intenção deliberada de agir de forma ilícita. Inclusive, é possível aplicar teorias do direito penal no Direito Administrativo Sancionador, como a análise de culpabilidade do agente já mencionada anteriormente, mais especificamente quanto à inexigibilidade de conduta diversa.9

No entanto, para isso seria necessário um processo com ampla defesa e contraditório de fato, como seria no processo judicial de improbidade. Por esse tipo de procedimento (PAD) não poderia concluir-se pela presença do dolo, consequentemente, concluir que haveria o cometimento de ato ímprobo, uma vez que a instrumentalização do processo não possui as garantias processuais necessárias para o exercício da ampla defesa e do contraditório.10

Ainda no tocante à estrutura processual, vale salientar que o PAD é tão escasso no sentido de sistema de garantias, que nem a Súmula 14 do STF11 pode ser aplicada em seu âmbito, a qual preceitua a garantia do defensor de ter acesso a todo elemento de prova documentado. E, ainda, não é obrigatória a atuação do advogado no âmbito do PAD12, conforme a Súmula 5 do STF.

Além disso, é de se destacar que a Súmula 66513 do STJ limita a atuação jurisdicional sobre exame do mérito administrativo, ou seja, demonstra que os atos produzidos no âmbito do PAD já possuem uma possível barreira de revisão pelo judiciário, o qual analisará a legalidade do Processo apenas em algumas hipóteses.

Apesar das reflexões e críticas aqui trazidas relativamente ao procedimento do PAD, ante a aplicação do referido fundamento para apuração de improbidade administrativa, o entendimento do STJ por meio da Súmula 65114 é de que compete à autoridade administrativa aplicar ao servidor público a pena de demissão pela prática de improbidade, independente de prévia condenação judicial.

Diante dessa conjuntura, percebe-se também como é de tremenda importância a atuação do advogado no âmbito do Processo Administrativo Disciplinar, ainda que não obrigatória, pois isso pode fazer a diferença no curso processual, ante os riscos que o resultado do processo pode trazer ao servidor público. Até porque, como mencionado anteriormente, pela Súmula 665 do STJ, a qual estipula limites cognitivos na análise jurisdicional, o resultado do PAD pode ser de árdua discussão para eventual reforma no âmbito do judiciário posteriormente.

Desse modo, a reflexão que se faz aqui é sobre como um Processo Administrativo Disciplinar, que não possui nenhum sistema real de garantias, pode imputar um ato de improbidade (doloso) ao servidor público, o demitindo e levando o caso a uma quase que inevitável ação civil de indenização (ressarcitória), ação de improbidade administrativa e até mesmo a uma persecução criminal?

O PAD acaba por adiantar a imputação de improbidade, de forma totalmente objetiva, sem qualquer instrumentalização processual que possibilite uma análise mais exauriente, já aplicando sanções com base em fundamento/argumentação que só poderia ser constatada realmente ao final do processo (judicial) de improbidade. Isso posto, torna-se evidente a necessidade premente de uma revisão acerca dos PADs, especialmente no que diz respeito à aplicação do fundamento que imputa ao servidor público a persecução por ato ímprobo.

Ademais, a discrepância entre a natureza dolosa da improbidade administrativa e a limitação dos PADs em apurar adequadamente o elemento subjetivo do dolo revela uma lacuna significativa no sistema jurídico atual. A falta de garantias processuais básicas, a responsabilização objetiva de atos de improbidade e a ausência de um processo eficaz, com contraditório e ampla defesa, colocam em xeque a legitimidade e a justiça desses procedimentos.

Urge, pois, uma reflexão profunda sobre como reformar o Direito Administrativo Sancionador, no caso do PAD, para garantir a proteção dos direitos fundamentais do servidor público, ao mesmo tempo em que se busca a eficiência na apuração e punição de condutas irregulares, sendo imperativa a implementação de medidas concretas que assegurem a legalidade, a justiça e a eficácia do processo.

Assim, pode-se inferir que a aplicação do Direito Administrativo Sancionador como um todo merece ser revista, principalmente no tocante ao sistema de garantias processuais no âmbito do PAD, assim como quanto ao fundamento utilizado para persecução do servidor por improbidade administrativa, devendo o processo atender um raciocínio jurídico fundamentado em uma interpretação legal sistemática.

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1 Lei nº 8.112 de 11 de Dezembro de 1990

Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:

IV – improbidade administrativa;

2 Artigo 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

a) ato de improbidade

3 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 31

4 Lei n. 14.230, que alterou sensivelmente a Lei n. 8429, de 02 de junho de 1992 (LIA), a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, além de conceituar e definir os atos de improbidade administrativa.

5 https://www.conjur.com.br/2021-nov-07/johnston-sumula-651stj-lei-improbidade- administrativa/

6 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Editora          Revista dos       Tribunais,        2020.                       Disponível      em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/direito-administrativo-sancionador/1201070599. Acesso em: 24 mar. 2024.

7 Ibidem.

8 Ibidem.

9 https://www.iiede.com.br/index.php/2017/08/09/alexandre-cordeiro-conselheiro-do-cade- teoria-normativa-da-culpabilidade-no-direito-antitruste/

10 https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/conjur/nova-lei-de-improbidade

11 Súmula 14 do STF: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

12 Súmula 5 do STF: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

13 Súmula 665 do STJ – O controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvadas as hipóteses de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada.

14 Súmula 651 do STJ:Compete à autoridade administrativa aplicar a servidor público a pena de demissão em razão da prática de improbidade administrativa, independentemente de prévia condenação, por autoridade judiciária, à perda da função pública.