Busca e apreensão: como softwares gratuitos podem auxiliar na demonstração da (i)licitude da diligência policial.

Por Lawrence Lino

A Constituição Federal, em seu art. 5°, XI, assegura o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, determinando que ninguém pode nele penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

No mesmo sentido é o art. 245 do Código de Processo Penal, o qual preceitua que as buscas domiciliares somente podem ser executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite.

É nesse contexto que se verifica a importância do debate sobre o conceito de “dia”. Em decorrência das dimensões continentais do Brasil, sempre prevaleceu na jurisprudência o critério físico-astronômico, considerando como dia o período compreendido entre a aurora e o crepúsculo, apesar de haver quem defenda um critério cronológico, considerando como dia o período compreendido entre 6h e 18h.[1] Há, ainda, uma corrente mista, que visa conjugar ambos os critérios, dando prevalência àquele que, na situação específica, melhor potencializa a garantia constitucional.

Todavia, com o advento da Lei n.º 13.869/19 (Lei de Abuso de Autoridade), passou-se a discutir sobre a possibilidade de que o mandado de busca e apreensão fosse cumprido das 5h até as 21h. Isso porque o art. 22, § 1°, III, da Lei tipifica o crime de cumprimento de mandado de busca e apreensão após as 21h e antes das 5h. A contrario sensu, pareceria que o dispositivo possibilitaria o cumprimento do mandado de busca e apreensão das 5h até as 21h.

Não obstante essa inovação legislativa, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que a Lei de Abuso de Autoridade não definiu os conceitos de “dia” e “noite” para fins de cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar. Desse modo, mesmo que haja cumprimento do mandado após as 5h e antes das 21h, se ainda for noite, a diligência é ilegal. No AgRg no RHC 168.319/SP (DJe de 15/12/2023), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, a Sexta Turma do STJ anulou as provas colhidas em cumprimento de mandado de busca e apreensão realizado às 5h30, tendo em vista que “ainda estava totalmente escuro no local àquela hora, tanto que os policiais tiveram que usar lanternas para realizar a diligência, de modo que nem pelo critério físico-astronômico, nem pelo critério cronológico a medida pode ser considerada válida”.

Assim, ao que parece, o STJ parecer reputar relevante o critério físico-astronômico, apesar de não o ter adotado expressamente. Parece importante, pois, ao se analisar o cumprimento de mandado de busca e apreensão feita em horário limítrofe, a verificação da existência de luz solar.

Mas como fazer isso quando não há elementos probatórios nos autos que indiquem se já ou ainda havia luz do Sol naquele mesmo local, data e hora? Com efeito, para uma boa defesa, é crucial que o defensor avalie não só todas as provas que já estão produzidas, mas também as que podem ser produzidas de forma privada e as que podem ser produzidas com auxílio do juízo competente, sendo importante, na investigação defensiva, a perspicácia e a sagacidade do defensor.[2]

Aqui pode ser providencial que o defensor tenha conhecimento da existência de ferramentas disponíveis na internet que podem atestar a configuração do céu em determinado ponto do globo terrestre em uma hora exata.

Uma ferramenta excelente para a finalidade de demonstrar visualmente a configuração do céu em determinada hora e localidade do globo terrestre é o Stellarium[3] – um software astronômico livre que serve para visualizar o céu aos moldes de um planetário, sendo disponível para Windows, Linux, MacOS, Android, iOS e Symbian.

Com o Stellarium, o usuário pode visualizar a configuração do céu, inclusive a posição do Sol, em qualquer horário, data e localidade do Planeta Terra, bastando que sejam colocadas as coordenadas geográficas na forma de DMS (graus, minutos e segundos).

Para conseguir as coordenadas geográficas exatas do ponto que se quer visualizar, basta entrar no Google Maps[4], colocar o endereço do local onde foi cumprido o mandado de busca e apreensão e, em cima do marcador vermelho, apertar com o botão direito do mouse. A primeira opção a se clicar que aparecerá será para copiar as coordenadas geográficas binárias (DD – graus decimais).

Para converter as coordenadas DD em DMS, é possível usar um conversor na internet, o qual realizará essa tarefa automaticamente.[5] Manualmente o cálculo é bastante simples: basta pegar os números decimais da coordenada (latitude e longitude) e multiplicar por 60. O resultado dessa operação gerará o valor dos minutos. Basta, então pegar os decimais desse resultado e multiplicar novamente por 60 para que se tenha o valor dos segundos. Por exemplo: o valor de determinada latitude em DD é 40,748417. Para se obter os minutos, basta pegar o valor 0,748417 e multiplicar por 60, que se terá como resultado 44,90502. Para os segundos, basta pegar o valor 0,90502 e multiplicar por 60, que se terá como resultado 54,3012. Assim a latitude na forma de DMS será 40° 44’ 54,3” N.

Importante ressaltar que valor positivo da coordenada da latitude indica norte e o valor negativo indica o sul. Quanto à longitude, o valor positivo da coordenada indica leste e o valor negativo indica oeste.

Trata-se o Stellarium de uma ótima ferramenta para auxiliar o defensor a demonstrar, de maneira visual, como estava a configuração celeste em determinado dia, horário e localidade, de modo a facilitar a construção da defesa e auxiliar no convencimento do juiz, diminuindo seu esforço cognitivo.

Mas não somente para fins de demonstração da regularidade de diligência de busca e apreensão pode servir o Stellarium. Também é possível imaginar, por exemplo, seu uso na demonstração que determinado local já estava escuro em certo horário, de modo que não haveria como identificar adequadamente o suspeito do delito.

Em suma, caberá à criatividade do defensor a determinação de quais maneiras poderá o software ser utilizado para a construção de uma melhor defesa.

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 798

[2] DIAS, Gabriel Bulhões Nóbrega. Manual Prático de Investigação Defensiva. 1. ed. EMais, 2019, p. 101-102.

[3] O software está disponível para download em português no link a seguir: https://stellarium.org/pt/. Acesso em: 18 fev. 2024.

[4] Disponível em: https://www.google.com.br/maps/preview. Acesso em: 18 fev. 2024.

[5] Um exemplo de conversor pode ser acessado no link a seguir: https://www.omnicalculator.com/pt/conversao/conversor-coordenadas#:~:text=Para%20converter%20coordenadas%20de%20latitude,a%20parte%20decimal%20por%2060. Acesso em: 18 fev. 2024.